Estado empurra casais para divórcios amigáveis
Taxas de justiça pagas à cabeça encarecem acesso ao tribunal. Governo diz que valores são devolvidos no final.
Mais fácil, mas mais caro. A nova lei em vigor desde Dezembro facilitou o requerimento do divórcio, mas a entrada em vigor do novo regime de custas judiciais veio encarecer o processo. Além de passar a pagar-se uma taxa de 612 euros logo que se inicia o processo, desde 20 de Abril foi revogada uma norma que permitia ao juiz reduzir o valor da acção para efeitos de cálculo das custas.
"Quando se introduziu o conceito de divórcio sem culpa, o argumento era que não poderia haver coacção de um dos membros do casal sobre o outro. Agora é o Estado que faz coacção: se tiveres 612 euros para discutir, tudo bem; caso contrário, divorcia-te por mútuo acordo", brinca Maria Filomena Neto, responsável pelo Departamento de Família e Menores da sociedade de advogados JPAB.
Salientando concordar com o princípio geral de pagamento de custas, a advogada explica que em causa estão os valores praticados, que dificultam o acesso imediato ao tribunal. "Acho excessivo. Na prática, faz-se uma equiparação a uma acção de dívida. Dada a natureza dos direitos, considero que deveria haver um tratamento diferenciado, como havia anteriormente."
As contas não são fáceis de fazer, até porque o cálculo das custas judiciais varia consoante o desfecho da acção e o valor fixado pelo juiz. No caso da taxa de justiça, anteriormente havia dispensa, para acções de divórcio e menores. Agora, além dos 612 euros num divórcio, se um casal tiver filhos acrescem 61,2 euros para pedir a regulação da responsabilidade paternal. No caso das custas, a alteração pode resultar numa diferença de 514 euros.
Para haver dispensa do pagamento das custas judiciais, além do rendimento mensal são avaliados elementos como o valor da habitação própria e os rendimentos bancários. No site da segurança social é disponibilizado um simulador que permite avaliar caso a caso.
valores recuperados O Ministério da Justiça assegura que o saldo final é positivo, porque parte destes valores pode ser recuperada no final do processo. De acordo com o artigo 22 do Regulamento das Custas Processuais, "é convertido integralmente o montante pago a título de taxa de justiça para pagamento antecipado de encargos". Ou seja, o valor pago à cabeça é devolvido no final se o processo não tiver encargos. Numa resposta escrita ao pedido de esclarecimento sobre as mudanças, o Ministério da Justiça assegura que de facto é possível ficar "ficar praticamente isento".
Para Filomena Neto, esta recuperação posterior não retira a carga inicial de ter de se "adiantar dinheiro ao Estado". O objectivo é evidente: retirar processos dos tribunais e "empurrar as pessoas para o divórcio por mútuo consentimento".
Embora sem ter estudado as consequências do novo regime de custas em diferentes áreas de intervenção, António Martins, presidente da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, mostra-se preocupado com "o acesso ao direito, numa perspectiva geral". Além de considerar penalizadora a exigência de pagamentos à cabeça, quando anteriormente eram parcelares, critica a introdução de penalizações, em processos laborais, quando não se recorre primeiro à resolução alternativa de conflitos.
"Ninguém pode ser penalizado por não recorrer a um meio alternativo", considera António Martins. "Deixamos de ter o pagamento de um serviço ou uma taxa para passarmos a ter um imposto."
alternativas O princípio de apertar o crivo para tentar desentupir os tribunais pode parecer nobre, mas dois constitucionalistas ouvidos pelo i desconfiam da eficácia das medidas. "Acreditar que aumentando os constrangimentos no acesso à justiça se resolvem os problemas de celeridade é uma ideia infeliz", sustenta o constitucionalista Pedro Bacelar Vasconcelos.
Idêntica opinião tem João Bacelar Gouveia, que acentua ser difícil avaliar em que medida as tabelas de custas podem limitar o direito de acesso dos cidadãos. Para isso é preciso confirmar se o novo regime reflecte "o tipo de processos, a condição económica de quem os apresenta e perceber se existe ou não dupla tributação".
Embora a Constituição defina que ninguém pode ficar impossibilitado de recorrer à justiça por questões económicas, Bacelar Gouveia ressalva que o "conceito é indeterminado".
Também Pedro Bacelar Vasconcelos diz que uma avaliação correcta de eventuais alterações nos níveis de acesso só pode ser feita considerando valores concretos, para pesar as diferenças.
dissuasão Quando o tema é o divórcio há contudo quem defenda que o agravamento de taxas e a limitação do acesso fazem todo o sentido. É essa a opinião de Maria Saldanha Ribeiro, mediadora familiar e psicóloga clínica.
"Os tribunais não são pacificadores", argumenta. "Porque o sistema judicial pressupõe uma dicotomia ? para haver um ganhador tem de haver um perdedor. A família deve resolver os problemas na família."
Idealmente, a advogada Filomena Neto concorda. Mas o que seria ideal raramente segue em linha paralela à realidade. Há casos que começam por mútuo consentimento e por divergências em partilhas ou regulação da responsabilidade parental e acabam nos tribunais. Tal como há histórias de violência e de recusa total de diálogo entre as duas partes envolvidas.
"Evidentemente que tudo tem duas faces. Em casos de abuso e violência doméstica, tem de haver capacidade para dar uma resposta diferenciada", afirma Maria Saldanha Ribeiro. "Mas também é verdade que os tribunais estão cheios de falsos casos de violência e essa verificação tem de ser feita com cuidado nos processos de divórcio."
fonte:http://www.ionline.pt/